Thursday, September 18, 2008

palavra de poeta

Tudo que não é invento é falso
Manoel de Barros

P – Este é seu primeiro livro em prosa. O que é a prosa para um poeta? Se fosse um bicho, que bicho seria?

M. de Barros – O livro é de prosa em versos e de poemas em prosa. Eu quisera provar a mim mesmo que: retirar da linguagem o banal faz poesia. Depois é procurar o equilíbrio sonoro das letras, das palavras, das frases. Quero dizer: produzir harmonia. Produzir imagens, na prosa ou no verso, faz poesia. O ritmo é cortado por um ponto ou por um corte. Se a gente desconstruir a imagem com os nossos adoecimentos psíquicos a poesia aparece melhor e mais particular. A poesia é esse bicho sem boca. E que, entretanto, canta.

P - O senhor já anuncia no título, que são memórias inventadas, portanto, ficção, mentira. O senhor já pensou em escrever memórias não inventadas? Acha que alguém pode realmente escrever isso?

M. de Barros – Em literatura, as memórias não inventadas seriam apontamentos, informação sobre a vida de uma pessoa. Memórias literárias têm que entrar na imaginação. Se é a imaginação que produz imagens, as memórias serão apontamentos sobre uma vida. Nunca obra literária. A imaginação não agüenta o que é real.

P – Mais uma vez, o senhor declara seu amor às coisas desprezíveis, diz que é um apanhador de desperdícios, fala dos achadouros da infância e valoriza a sucata. Sua poesia é absolutamente anti-industrial e anti-moderna. Só há poesia nessas coisas laterais? Nas margens? Não pode haver poesia em um automóvel, uma cidade, uma nave espacial?

M. de Barros – Ai meu Deus! Há poesia em tudo. Mas essa é a minha tara, é minha particularidade. Há quem veja poesia até em máquinas mortíferas. Eu prefiro o cisco. O que faz uma poesia ser moderna é a linguagem e não o material usado.

P - Isso quer dizer que a poesia está nas coisas, e não em quem as vê? Mas, em “Ver” o senhor declara também o seu gosto supremo de ver. Afinal, onde está a poesia, no mundo, ou em quem o vê?

M. de Barros – Beleza e glória das coisas o olho que põe. Acho que já escrevi isso. Penso que a gente produz a poesia adotando uma linguagem particular para o ver. A poesia pode sair de uma linguagem de retraves.

P – Em “Parrede” o senhor fala do seu apego a Vieira. Em “Cabeludinho” aparece o interesse sofisticado pelo chiste e pelos jogos de palavras. Em “Fraseador” o senhor define seu desejo. Como se sente um fraseador num universo poético que parece desconfiar da palavra?

M. de Barros – Eu desconfio sim, às vezes, de alguma palavra. Tenho dúvidas de sua competência. Quando assim, eu boto ela de joelhos no caco de vidro até que ela me obedeça, me afague e fique à feição de ser usada por mim. A palavra tem que me ser para que eu a use.

P – A poesia contemporânea é (ou deseja ser) herdeira de João Cabral de Melo Neto. Os senhores parecem habitar opostos extremos. O senhor o lê? O que pensa de sua poesia?

M. de Barros – Leio João Cabral de Melo Neto desde o seu primeiro livro. Poesia é construção com letras. Cabral é construtor de catedrais de palavras. Não importa se a catedral é de severinos. Não importa o tema, os temas. Cabral tratava com o rigor de engenheiro. Acho que a sua poesia tem a duração do para sempre.

P – As iluminuras de Martha Barros, além de muito bonitas, estão em completa sintonia com seu texto. O senhor também escreve com imagens. Já teve o sonho de ser pintor?

M. de Barros – Não tive nunca esse sonho.Mas fiz um curso, como ouvinte, de pintura, no Museu de Arte Moderna de Nova York só para aprender a ver. Aprendi que em pintura também se pode fazer metáfora de pássaros como a Martha fez.

P – “Acho que faço agora o que não pude fazer na infância”, o senhor escreve. Como foi sua infância, muito solitária, muito tímida? Toda poesia é sempre a substituição de uma falta?

M. de Barros – Minha infância a passei numa fazenda no Pantanal. Nesse lugar o tempo era parado. Ou passava mais devagar que lesma. “às vezes a lesma chegava primeiro que o fim do dia. Eu não era solitário. Tinha três irmãos. A gente brincava os nossos brinquedos. No lugar só tinha o nosso rancho e animais de sela. O que sufocava não era a falta de espaço. A gente só via distâncias. A gente inventava brinquedos o tempo todo. Agora eu invento brinquedos com palavras. Um vício que eu trouxe de lá.

Entrevista concedida a José Castello (Jornal Valor) em função do lançamento do primeiro livro em prosa do autor. Publicada em 2/05/03.

2 comments:

rosa said...

... estou num momento muito MdeB.
E Cartola.
E outros poetas das pequenas coisas.
estar longe de você mas em sintonia como ultimamente faz com que eu me sinta muito bem acompanhada quando estou só.

fulô said...

ô bunitinha...mas tu sempre soube que eu sou a rainha das pequenas coisas, das delicadezas, dos detalhes, dos pequenos prazeres e delícias. por isso o nome do blog, né?
quanto a estar perto de ti, estou e estarei sempre!!
agora então que você tem mary consuelo é que danou-se tudo de vez! ha, ha!