Saturday, January 28, 2012

Matéria de poesia

Todas as coisas cujos valores podem ser
Disputados no cuspe da distância
Servem para poesia

O homem que possui um pente
E uma árvore
Serve para poesia

Terreno de 10x20, sujo de mato - os que
Nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
Servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Colecção de besouros abstémios
O bule de Braque sem boca
São bons para poesia
As coisas que não levam a nada
Têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
Tem o seu lugar
na poesia e na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, grampos,
Retratos de formatura
Servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
Por exemplo: pedras que cheiram
Água, homens
Que atravessam períodos de árvore,
Se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
E que você não pode vender no mercado
Como, por exemplo, o coração verde
Dos pássaros
Serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
-sapatos, adjectivos-
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima,
Serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
Servem demais
O traste é óptimo
O pobre diabo é colosso
Tudo que explique
O alicate cremoso
E o lodo das estrelas
Serve demais da conta

Pessoas desimportantes
Dão pra poesia
Qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
A lagartixa de esteira
E a laminação de sabiás
É muito importante para poesia

O que é bom para o lixo é bom para a poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
A palavra repositório que eu conheço bem:
Tem muitas repercussões
Como um algibe entupido de silêncio
Sabe a destroços

As coisas jogadas fora
Têm grande importância
-como um homem jogado fora

Aliás é também objecto de poesia
Saber qual o período médio
Que um homem jogado fora
Pode permanecer na terra sem nascerem
Em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens da poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
Ao poema, e as andorinhas de junho.


Manoel de Barros