Thursday, October 28, 2010

Encarnação Involuntária - Clarice Lispector

Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesma.
Um dia, no avião...ah, meu Deus – implorei – isso não, não quero ser essa missionária!
Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida de missionária já me haviam tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço – mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar no chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.
Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque sobretudo me tornei toda moral. No entanto quando entrei no avião estava tão sadiamente amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil: toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto ela lê a Bíblia.
Vamos ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. E ela cora, mal o rapaz se aproxima.
Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias longas e cinzentas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso, como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não entendo, é com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida que facilmente cora à aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.
Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, senão no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma – então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim, e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.
Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava sendo hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance de minha visão intencionada. Mas o homem gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo que estava mergulhando no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo.

Sunday, October 17, 2010

em tempo

todos estão surdos

Desde o começo do mundo
Que o homem sonha com a paz
Ela está dentro dele mesmo
Ele tem a paz e não sabe
É só fechar os olhos e olhar pra dentro de si mesmo

Tanta gente se esqueceu
Que a verdade não mudou
Quando a paz foi ensinada
Pouca gente escutou
Meu Amigo volte logo
Venha ensinar meu povo
O amor é importante
Vem dizer tudo de novo

Outro dia, um cabeludo falou:
"Não importam os motivos da guerra
A paz ainda é mais importante que eles."
Esta frase vive nos cabelos encaracolados
Das cucas maravilhosas
Mas se perdeu no labirinto
Dos pensamentos poluídos pela falta de amor.
Muita gente não ouviu porque não quis ouvir
Eles estão surdos!

Tanta gente se esqueceu
Que o amor só traz o bem
Que a covardia é surda
E só ouve o que convém
Mas meu Amigo volte logo
Vem olhar pelo meu povo
O amor é importante
Vem dizer tudo de novo

Um dia o ar se encheu de amor
E em todo o seu esplendor as vozes cantaram.
Seu canto ecoou pelos campos
Subiu as montanhas e chegou ao universo
E uma estrela brilhou mostrando o caminho
“Glória a Deus nas alturas
E paz na Terra aos homens de boa vontade”

Tanta gente se afastou
Do caminho que é de luz
Pouca gente se lembrou
Da mensagem que há na cruz
Meu Amigo volte logo
Venha ensinar meu povo
Que o amor é importante
Vem dizer tudo de novo

Thursday, October 7, 2010

pois é

há umas duas semanas fiquei sabendo que um ex-amigo morreu. na verdade ele era também, por alguma ironia cruel do destino, um ex-namorado. mas o namoro foi curtíssimo e isso nem é tão importante. o importante mesmo é que ele era meu amigo. amigo de mais de 20 anos. ex-amigo a gente não é nunca. por mais que se esforce, que brigue, que se afaste. e tudo isso aconteceu com a gente depois desse maldito namoro.
tô com essa notícia entalada na garganta desde então. juntando com a outra porção de coisas complicadas que tem acontecido na minha vida ultimamente, ficou aquele nó estranho dentro de mim que só agora vou desfazendo.
um pedaço é de culpa. eu sou a rainha da culpa. e mesmo que saiba que esse fardo não é meu, dá tristeza de não ter conseguido falar com ele antes dele ir. dá tristeza em pensar que saí fora dessa história de namorar justo porque sabia que ele tava num processo auto-destrutivo muito sinistro e que ia morrer cedo (só não imaginava que ia ser tão logo). eu com essa merda dessa minha intuição e sensitividade vi a morte nos olhos dele e tive medo. quis ajudar mas não pude. tive medo e corri.
tentei conversar com ele sobre essas coisas quando acabamos, mas ele ficou com raiva de mim. ficou com raiva de mim e morreu assim.
mais foda ainda foi que um pouco antes dele morrer eu pensei nele de novo.
entrei no furacão da arrumação aqui em casa e encontrei bilhetes e cartões de 20 anos atrás. num deles ele me desejava feliz aniversário e se desculpava por não ter tido tempo de fazer isso na data certa. muito trabalho, dizia ele. há 20 anos atrás ele já se matava de trabalhar.
num outro cartão, que eu achei logo depois que soube da morte dele, ele estava 'grávido' do primeiro filho. era um texto cheio de gravidezes e meus olhos encheram de lágrimas.
numa agenda antiga (93), achei uma entrada falando do nascimento do filho dele. no dia seguinte, eu fui visitar. nem lembrava disso.
nem sei do que ele morreu. e não posso falar com a (ex)mulher dele porque ela também tem raiva de mim.
mas sei bem que de vez em quando ela ainda vem bisbilhotar o meu blog (sei disso há anos).
se ela ainda precisa disso, que assim seja. e eu vou falar daqui mesmo - tenho rezado muito por ela e pelos filhos dela. há muitos anos que eu faço isso. rezo do meu jeito, sem texto ou repetição, mas com intenção. intenção de amor, paz e tranquilidade.
quanto a ele, rezo para que finalmente possa descansar em paz. descanso muito mais do que merecido.

Wednesday, October 6, 2010

presentinho da comadre em julho de 92

O Verbo no Infinito - Vinicius de Moraes

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, e ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver.
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...