Sunday, March 20, 2011

Sou eu

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio! ...

Álvaro de Campos

O homem mais feliz do mundo

"Houve uma vez um jovem que era muito inquieto. Ele viajava de um vilarejo a outro, esperando encontrar um mestre que lhe ensinasse algo de valor. As pessoas o viam se deslocar de um lugar para outro e o tratavam com generosidade, porque era um jovem bondoso e muito bem-educado. Certo dia, ele encontrou um mestre que era considerado muito sábio.
O jovem disse a ele: 'Sou muito inquieto e não consigo parar de correr de um lugar para outro. É desse jeito que sou, e as pessoas acham isso estranho. Gostaria de poder ser feliz e de poder me assentar.' O sábio escutou o jovem, pensou um pouco e disse: 'Compreendo sua condição e posso ajudá-lo. Mas, se quer que eu seja de alguma ajuda, não pode questionar o remédio que vou receitar.''Ó sábio mestre', replicou, 'naturalmente não vou questionar suas ordens. Vou segui-las à risca, mesmo que isso signifique que não farei nada mais pelo resto dos meus dias.'
O sábio então disse: 'Você precisa se entregar à estrada e viajar por toda parte. Nas suas viagens deve procurar o homem mais feliz do mundo. Quando encontrá-lo, você deve pedir a camisa dele.' Parecia um tratamento incomum, mas o jovem se comprometera a fazer o que fosse pedido, portanto se despediu do sábio e se entregou à estrada.
Viajou para o norte, viajou para o sul, para o leste e para oeste e conheceu todo tipo de gente. Alguns eram ricos, outros eram pobres. Alguns eram corajosos e outros, covardes. E perguntou a todos se sabiam onde poderia encontrar o homem mais feliz do mundo.
O jovem recebeu muitas respostas. Algumas pessoas disseram: 'Sou muito feliz, mas há alguém mais feliz do que eu do outro lado da colina'. E outras disseram: 'Deixe-nos em paz ou lhe daremos uma surra.' O jovem procurou por todo o seu reino e viajou para o reino vizinho, e depois para outro. Os dias se tornaram semanas e as semanas se tornaram meses, e depois anos. Ele não descansou por um só momento. Até que um dia, exausto devido à busca, parou para descansar sob uma árvore à beira de uma grande floresta e tirou os sapatos.
Enquanto estava ali sentado, escutou uma gargalhada. Era tão alta que os pássaros não pousavam, mas ficavam voando em círculos. E ela era tão trovejante que fazia as folhas caírem das árvores. Qualquer outra pessoa teria se chocado com o som, mas o jovem - que a essa altura já não era tão jovem - ficou muito empolgado. Calçou novamente os sapatos e seguiu o som da gargalhada.
A floresta era densa e escura. Também seria silenciosa, não fosse pelo estrondoso som da gargalhada vindo ao longe. O homem seguiu o som e, logo, chegou a um lago. No lago havia uma ilha e, na ilha, uma casinha. A gargalhada parecia estar vindo da casa. O homem não encontrou nenhum barco, então pulou na água e nadou até a ilha.
Encharcado e congelado, ele foi até a casa e bateu à porta. Não houve resposta, mas a gargalhada não parou. Então, reunindo toda a sua coragem, o homem abriu a porta. Lá dentro, sobre um tapete, estava sentado um velho. Usava na cabeça um grande turbante, da cor de morangos. Estava rindo tão efusivamente que as lágrimas rolavam pelo seu rosto. O buscador avançou silenciosamente até chegar junto à borda do tapete. Então disse bem baixinho: 'Perdão, Mestre, mas sou de um reino muito distante e fui enviado para encontrar o homem mais feliz do mundo. O senhor me parece incrivelmente feliz. Por favor, diga-me, há alguém mais feliz do que o senhor?'
O homem sorridente tirou um lenço da manga e assoou o nariz. 'Sou muito feliz', disse, gargalhando de novo, 'e posso dizer que certamente não conheço ninguém tão feliz quanto eu. Hahahahahaha!''Então, senhor, posso lhe pedir um favor?''Sim. Qual?''Poderia tirar sua camisa e dá-la a mim?'
Ao ouvir isso o velho gargalhou e gargalhou, e gargalhou e gargalhou. Riu tanto que todos os animais da floresta gritaram de medo. 'Meu rapaz, se tivesse se dado ao trabalho de olhar pra mim', respondeu o sábio, chorando de tanto rir, 'teria visto que não estou usando nenhuma camisa.'
Os olhos do jovem se arregalaram quando percebeu que isso era verdade. Estava prestes a dizer algo, mas o sábio estava desenrolando o seu turbante. Desfez volta por volta, deitando o tecido vermelho sobre o tapete. Somente quando chegou ao fim foi que o homem percebeu a verdade: o sábio não era outro senão aquele mestre que o enviara na sua busca.
'Diga-me, ó Mestre', indagou o jovem, 'por que não me informou que era o homem mais feliz do mundo desde o início? Teria me economizado um bocado de tempo e incômodo.''Porque', respondeu o sábio, 'para que você pudesse se acalmar, precisava experimentar certas coisas, ver outras coisas e conhecer várias pessoas. Eu sabia que isso seria um processo longo, mas, se eu lhe dissesse no começo o que ele envolveria, você teria fugido e nunca teria sido curado.'"
(pg. 359-362, in Nas noites árabes - uma caravana de histórias, por Tahir Shah)

Thursday, March 17, 2011

aqui no marrocos

"É que aqui no Marrocos nós solucionamos as coisas. Nós ouvimos, nós observamos. Mas, no seu país, vocês fazem o contrário. Esperam que tudo seja resolvido para vocês, entregue de bandeja. Vocês esperam que outras pessoas usem seu cérebro para que não tenham que usar seu próprio cérebro. Na sua sociedade, as pessoas são preguiçosas. Elas querem tudo agora, tudo de graça."
(pag 205, in Nas noites árabes - uma caravana de histórias, Tahir Shah)

Sunday, March 13, 2011

adoro esse conto

Ele me bebeu

É. Aconteceu mesmo.

Serjoca era maquilador de mulheres. Mas não queria nada com mulheres. Queria homens.

E maquilava Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilada, ficava deslumbrante. Era loura, usava peruca e cílios postiços. Ficaram amigos. Saíam juntos, essa coisa de ir jantar em boates.

Todas as vezes que Aurélia queria ficar linda ligava para Serjoca. Serjoca também era bonito. Era magro e alto.

E assim corriam as coisas. Um telefonema e marcavam encontro. Ela se vestia bem, era caprichada. Usava lentes de contato. E seios postiços. Mas os seus mesmos era lindos, pontudos. Só usava os postiços porque tinha pouco busto. Sua boca era um botão de vermelha rosa. E os dentes grandes, brancos.

Um dia, às seis horas da tarde, na hora do pior trânsito, Aurélia e Serjoca estavam em pé junto do Copacabana Palace e esperavam inutilmente um táxi. Serjoca, de cansaço, encostara-se numa árvore. Aurélia impaciente. Sugeriu que dessem ao porteiro dez cruzeiros para que ele lhes arranjasse uma condução. Serjoca negou: era duro para soltar dinheiro.

Eram quase sete horas. Escurecia. O que fazer?

Perto deles estava Affonso Carvalho. Industrial de metalurgia. Esperava o seu Mercedes com chofer. Fazia calor, o carro era refrigerado, tinha telefone e geladeira. Affonso fizera quarenta anos no dia anterior.

Viu a impaciência de Aurélia que batia com os pés na calçada. Interessante essa mulher, pensou Affonso. E quer carro. Dirigiu-se a ela:

- A senhorita está achando dificuldade de condução?

- Estou aqui desde as seis horas e nada de um táxi passar e nos pegar! Já não agüento mais.

- Meu chofer vem daqui a pouco, disse Affonso. Posso levá-los a alguma parte?

- Eu lhe agradeceria muito, inclusive porque estou com dor no pé.

Mas não disse que tinha calos. Escondeu o defeito. Estava maquiladíssima e olhou com desejo o homem. Serjoca muito calado.

Afinal veio o chofer, desceu, abriu a porta do carro. Entraram os três. Ela na frente, ao lado do chofer, os dois atrás. Tirou discretamente o sapato e suspirou de alívio.

- Para onde vocês querem ir?

- Não temos propriamente destino, disse Aurélia cada vez mais acesa pela cara máscula de Affonso.

Ele disse:

- E se fôssemos ao Number One tomar um drinque?

- Eu adoraria, disse Aurélia. Você não gostaria, Serjoca?

- É claro, preciso de uma bebida forte.

Então foram para a boate, a essa hora quase vazia. E conversaram. Affonso falou de metalurgia. Os outros dois não entendiam nada. Mas fingiam entender. Era tedioso. Mas Affonso estava entusiasmado e, embaixo da mesa, encostou o pé no pé de Aurélia. Justo no pé que tinha calo. Ela correspondeu, excitada. Aí Affonso disse:

- E se fôssemos jantar na minha casa? Tenho hoje escargots e frango com trufas. Que tal?

- Estou esfaimada.

E Serjoca mudo. Estava também aceso por Affonso.

O apartamento era atapetado de branco e lá havia escultura de Bruno Giorgi. Sentaram-se, tomaram outro drinque e foram para a sala de jantar. Mesa de jacarandá. Garçom servindo à esquerda. Serjoca não sabia comer escargots e atrapalhou-se todo com os talheres especiais. Não gostou. Mas Aurélia gostou muito, se bem que tivesse medo de ter hálito de alho. Mas beberam champanha francesa durante o jantar todo. Ninguém quis sobremesa, queriam apenas café.

E foram para a sala. Aí Serjoca se animou. E começou a falar que não acabava mais. Lançava olhos lânguidos para o industrial. Este ficou espantado com a eloqüência do rapaz bonito. No dia seguinte telefonaria para Aurélia para lhe dizer: o Serjoca é um amor de pessoa.

E marcaram novo encontro. Destava vez num restaurante, o Albamar. Comeram ostras para comerçar. De novo Serjoca teve dificuldade de comer as ostras. Sou um errado, pensou.

mas antes de se encontrarem, Aurélia telefonou para Serjoca: precisava de maquilagem urgente. Ele foi à sua casa.

Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto.

A impressão era que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena.

Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar ao espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos - e tinha uma ossatura espetacular - mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do Affonso.

Voltou sem graça. No restaurante quase não falou. Affonso falava mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava interessado no rapaz.

Enfim, enfim acabou o almoço.

Serjoca marcou encontro com Affonso para de noite, Aurélia disse que não podia ir, estava cansada. Era mentira: não ia porque não tinha cara para mostrar.

Chegou em casa, tomou um banho de imersão com espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua individualidade?

Saiu da banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha enorme, vermelha. Sempre pensativa. Pesou-se na balança: estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira também o peso, pensou.

Foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada.

- Então - então de súbito deu uma bruta bofetada no lado esquerdo do rosto. Para se acordar. Ficou parada olhando-se. E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para encontrar-se.

E realmente aconteceu.

No espelho viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to.

(Clarice Lispector, in A via crucis do corpo)