Saturday, September 6, 2008

os milagres, as folhas e as cartomantes

ando lembrando de uma taróloga que fui há quase um ano. na verdade nem gostei e nem dei trela para o que ela disse na época. não sou de ir nestas coisas e me lembro inclusive que saí de lá meio puta. mas estes dias dei de lembrar o que ela disse, não sei exatamente porquê.
e lembrei também deste escritinho da clarice, que eu amo muito e me acompanha há algum tempo já. pois acho que sou que nem ela - sou daquelas que rolam pedras durante séculos.
e sou a rainha da coincidência.

"O milagre das folhas

Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: “Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria.” Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer – seria milagre? Mas já me foi tranqüilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.
Uma dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza."

Clarice Lispector

1 comment:

Paulo Tamburro said...

CLARICE LISPECTOR, quem maior? Concorda? Não, mulher-melancia não vale.