Thursday, October 10, 2013

Alta ajuda


A força do pensamento negativo
Francisco Bosco

Nunca li um livro de autoajuda. Certa vez tentei ler O segredo, porque queria entender como funcionam esses textos. Achei o livro absolutamente tedioso e, desculpem-me seus eventuais leitores, ofensivo: não só à inteligência, mas à experiência humana em geral. Pelo que posso depreender do gênero, entretanto, a autoajuda prega basicamente o famigerado “pensamento positivo”. Como, para o bem e para o mal, estou além de qualquer possibilidade de consolo, a autoajuda não me atinge. Desconheço o gênero, como disse, mas se sua característica essencial é mesmo o mantra do pensamento positivo, então posso dizer com todas as letras: a autoajuda em nada ajuda nas situações que talvez sejam as mais críticas e decisivas da vida do sujeito. Nessas, só o que pode ajudar é a vida angustiosa de um pensamento negativo.

O que chamo de situações críticas e decisivas são aquelas em que o sujeito se percebe preso a um sofrimento psíquico sistemático, fadado a repetições entristecedoras que indicam uma espécie de condenação estrutural no seu psiquismo e na sua realidade objetiva. Em face dessas situações, o pensamento positivo não é apenas ineficaz, mas nocivo: ele impedirá, com seus mantras de otimismo escapista, que o sujeito possa ativar os mecanismos dialéticos da existência, capazes de fazer com que, aprofundando-se, uma coisa reverta-se em seu oposto.
No grande romance de Milton Hatoum, Dois irmãos, Yaqub e Omar são os filhos gêmeos de Zana. Porque quase morreu durante o parto, e teve saúde frágil em seus primeiros meses, Omar tornou-se o filho preferido de Zana, tratado por ela à base de uma liberdade irrestrita. Ao contrário, Yaqub sempre sentiu-se preterido no amor materno. No início de suas adolescências, os irmãos interessaram-se pela mesma menina. Numa tarde, em meio a uma festa, Omar a flagra beijando seu irmão; impetuoso e inconsequente, quebra uma garrafa e com ela dá uma estocada certeira no rosto de Yaqub, abrindo-lhe um rasgo sangrento.
Temendo que o conflito entre os gêmeos se acirrasse por causa da garota, seus pais decidem mandá-los para sua aldeia natal, no Líbano. Zana, contudo, incapaz de separar-se do filho predileto, convence o marido a despachar apenas Yaqub. Assim, consuma-se uma injustiça que para sempre determinaria a vida da família: Yaqub, o inocente, o preterido, é punido com o exílio forçado de cinco anos numa aldeia remota no Líbano.
Lá, não responde às cartas da mãe. As poucas notícias dele que chegam descrevem-no em cena estoica: sentado no chão, lendo um livro, comendo figos secos. Quando retorna a Manaus, para voltar a viver com os pais, é um adolescente arredio e silencioso. Zana, em interpretação conveniente a seu autoengano, acredita que o silêncio se deve ao esquecimento do português. Mas a recusa de Yaqub se estende a todos os domínios de sua antiga existência: deixa de frequentar os bailes da província, não vai a festas, não bebe, não encontra os velhos amigos. Fica em casa, solitário, varando as noites em meio a livros, estudando.
O que aí está em funcionamento é precisamente o processo, transformador, do pensamento negativo. Yaqub prepara-se para morrer, isto é, para aniquilar sua antiga e estruturalmente condenada vida de filho preterido, intimidado, sujeito a injustiças. Não é fácil morrer. Morrer é uma arte: a etapa decisiva do pensamento negativo.
Yaqub, após a injustiça do exílio, não deixa que se dissipe - em bebedeiras ou pensamento positivo - a energia negativa de sua revolta. Concentra-a, retesa-a com um silêncio blindado. Em seguida, valendo-se dessa energia, começa a dar um conteúdo positivo à sua revolta: estuda com afinco para ser engenheiro, prepara as condições objetivas, materiais e psíquicas, de sua transformação. Essa etapa, de recusa obstinada às forças dissipadoras de sua antiga existência, deve ser compreendida como uma ascese. A ascese é o movimento que visa à ampliação de poderes do sujeito, por meio da renúncia às tentações que enfraquecem suas capacidades e da conquista de virtudes que as fortalecem.
Munido da coluna de força propiciada pela ascese, no momento em que as condições objetivas básicas foram alcançadas - um convite para um emprego ainda modesto em São Paulo -, Yaqub encara a mãe de frente e comunica-lhe que está indo embora. Esse momento deve ser compreendido como o momento do ato. Um ato não é uma ação qualquer; é uma ação que consuma uma preparação simbólica, psíquica, e que finalmente se efetiva na realidade externa, transformando a um tempo a vida subjetiva e objetiva da pessoa que o realiza.
Mas um ato só se sustenta se tiver sido preparado por todas as etapas do pensamento negativo; caso contrário, dá-se um ato em falso. Não estivesse cingido pela armadura ascética, Yaqub teria sucumbido à tentativa da mãe de retê-lo. Por isso é preciso morrer: um homem que já morreu não pode ser atingido por um mundo que não é mais o seu.
Tivesse, em vez de encarar a via árdua de seu processo negativo, preferido o consolo fácil do pensamento positivo, Yaqub não teria sido capaz de implodir suas estruturas, que lhe retiravam a potência de agir e o condenava a uma existência passiva. Pode ser que em determinadas situações da vida o pensamento positivo seja recomendado (diante, por exemplo, de doenças graves). Mas, naquelas situações em que rodamos em círculos dentro de labirintos psíquicos, pensar que eles não existem não ajuda. O pensamento negativo é a melhor, se não a única saída: é preciso concentrar as forças para quebrar o muro.

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