A força do pensamento negativo
Francisco Bosco
Nunca li um livro de autoajuda. Certa vez
tentei ler O segredo, porque queria
entender como funcionam esses textos. Achei o livro absolutamente tedioso e,
desculpem-me seus eventuais leitores, ofensivo: não só à inteligência, mas à
experiência humana em geral. Pelo que posso depreender do gênero, entretanto, a
autoajuda prega basicamente o famigerado “pensamento positivo”. Como, para o
bem e para o mal, estou além de qualquer possibilidade de consolo, a autoajuda
não me atinge. Desconheço o gênero, como disse, mas se sua característica
essencial é mesmo o mantra do pensamento positivo, então posso dizer com todas
as letras: a autoajuda em nada ajuda nas situações que talvez sejam as mais
críticas e decisivas da vida do sujeito. Nessas, só o que pode ajudar é a vida
angustiosa de um pensamento negativo.
O que chamo de situações críticas e
decisivas são aquelas em que o sujeito se percebe preso a um sofrimento
psíquico sistemático, fadado a repetições entristecedoras que indicam uma
espécie de condenação estrutural no seu psiquismo e na sua realidade objetiva.
Em face dessas situações, o pensamento positivo não é apenas ineficaz, mas
nocivo: ele impedirá, com seus mantras de otimismo escapista, que o sujeito
possa ativar os mecanismos dialéticos da existência, capazes de fazer com que,
aprofundando-se, uma coisa reverta-se em seu oposto.
No grande
romance de Milton Hatoum, Dois irmãos,
Yaqub e Omar são os filhos gêmeos de Zana. Porque quase morreu durante o parto,
e teve saúde frágil em seus primeiros meses, Omar tornou-se o filho preferido
de Zana, tratado por ela à base de uma liberdade irrestrita. Ao contrário,
Yaqub sempre sentiu-se preterido no amor materno. No início de suas
adolescências, os irmãos interessaram-se pela mesma menina. Numa tarde, em meio
a uma festa, Omar a flagra beijando seu irmão; impetuoso e inconsequente,
quebra uma garrafa e com ela dá uma estocada certeira no rosto de Yaqub,
abrindo-lhe um rasgo sangrento. Temendo que o conflito entre os gêmeos se acirrasse por causa da garota, seus pais decidem mandá-los para sua aldeia natal, no Líbano. Zana, contudo, incapaz de separar-se do filho predileto, convence o marido a despachar apenas Yaqub. Assim, consuma-se uma injustiça que para sempre determinaria a vida da família: Yaqub, o inocente, o preterido, é punido com o exílio forçado de cinco anos numa aldeia remota no Líbano.
Lá, não responde às cartas da mãe. As poucas notícias dele que chegam descrevem-no em cena estoica: sentado no chão, lendo um livro, comendo figos secos. Quando retorna a Manaus, para voltar a viver com os pais, é um adolescente arredio e silencioso. Zana, em interpretação conveniente a seu autoengano, acredita que o silêncio se deve ao esquecimento do português. Mas a recusa de Yaqub se estende a todos os domínios de sua antiga existência: deixa de frequentar os bailes da província, não vai a festas, não bebe, não encontra os velhos amigos. Fica em casa, solitário, varando as noites em meio a livros, estudando.
O que aí está em funcionamento é precisamente o processo, transformador, do pensamento negativo. Yaqub prepara-se para morrer, isto é, para aniquilar sua antiga e estruturalmente condenada vida de filho preterido, intimidado, sujeito a injustiças. Não é fácil morrer. Morrer é uma arte: a etapa decisiva do pensamento negativo.
Yaqub, após a injustiça do exílio, não deixa que se dissipe - em bebedeiras ou pensamento positivo - a energia negativa de sua revolta. Concentra-a, retesa-a com um silêncio blindado. Em seguida, valendo-se dessa energia, começa a dar um conteúdo positivo à sua revolta: estuda com afinco para ser engenheiro, prepara as condições objetivas, materiais e psíquicas, de sua transformação. Essa etapa, de recusa obstinada às forças dissipadoras de sua antiga existência, deve ser compreendida como uma ascese. A ascese é o movimento que visa à ampliação de poderes do sujeito, por meio da renúncia às tentações que enfraquecem suas capacidades e da conquista de virtudes que as fortalecem.
Munido da coluna de força propiciada pela ascese, no momento em que as condições objetivas básicas foram alcançadas - um convite para um emprego ainda modesto em São Paulo -, Yaqub encara a mãe de frente e comunica-lhe que está indo embora. Esse momento deve ser compreendido como o momento do ato. Um ato não é uma ação qualquer; é uma ação que consuma uma preparação simbólica, psíquica, e que finalmente se efetiva na realidade externa, transformando a um tempo a vida subjetiva e objetiva da pessoa que o realiza.
Mas um ato só se sustenta se tiver sido preparado por todas as etapas do pensamento negativo; caso contrário, dá-se um ato em falso. Não estivesse cingido pela armadura ascética, Yaqub teria sucumbido à tentativa da mãe de retê-lo. Por isso é preciso morrer: um homem que já morreu não pode ser atingido por um mundo que não é mais o seu.
Tivesse, em vez de encarar a via árdua de seu processo negativo, preferido o consolo fácil do pensamento positivo, Yaqub não teria sido capaz de implodir suas estruturas, que lhe retiravam a potência de agir e o condenava a uma existência passiva. Pode ser que em determinadas situações da vida o pensamento positivo seja recomendado (diante, por exemplo, de doenças graves). Mas, naquelas situações em que rodamos em círculos dentro de labirintos psíquicos, pensar que eles não existem não ajuda. O pensamento negativo é a melhor, se não a única saída: é preciso concentrar as forças para quebrar o muro.